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22 de março de 2009

Perguntas à Língua Portuguesa

. .
Apesar de não ser um texto tão recente assim, ...num momento em que tanto se fala do Acordo Ortográfico, ...não resisti a trazer-vos aqui este saboroso naco de prosa de Mia Couto. Sei que é um pouco longo, mas não darão por perdido o tempo da leitura. . .
. . . Venho brincar aqui no Português, a língua.
Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta. A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou. Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio. No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas. Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro? Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua: • Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo? • No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco? • A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética? • O mato desconhecido é que é o anonimato? • O pequeno viaduto é um abreviaduto? • Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente. • Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu? • Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado? • Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação? • O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim? • Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"? • Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço? • Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro? • Mulher desdentada pode usar fio dental? • A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel? • As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"? • Um tufão pequeno: um tufinho? • O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha? • Em águas doces alguém se pode salpicar? • Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério? • Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose? • Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo? • Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca? Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente. Mia Couto . . . .

46 comentários:

Amaral disse...

Meg
Muito interessante este post. Adorei. Realmente a Língua Portuguesa, com ou sem acrdo, é magnífica.
Boa semana
Abraço

Maria disse...

É incrível, este Mia...
"a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. " é muito bonito, mesmo...

Obrigada, Meg.

Umb beijo

São disse...

Mia Couto é alguém que merece muito o meu apreço.
E, engraçado, acabei de ler obras dele há dias.
Boa semana.

Chanesco disse...

Minha cara Meg

Na linha de raciocinio de Mia Couto, pergunto eu:
Será que fazer um acordo, ortografico ou não, é acordar para uma nova realidade?

Um abraço, depois deste tempo afastado das lides blogueiras.

Anónimo disse...

Em poucas linhas, uma breve viagem pela nossa língua (no Brasil diríamos: idioma, para evitar mal-entendidos...)
Na minha cidade nasceu um escritor que tornou-se muito famoso, Monteiro Lobato, e que desprezava as normas, quando todos as veneravam. As normas mudaram, mas sua imaginária ainda povoa milhares ou milhões de memórias e mentes.
Oiço (no Brasil, ouço) pessoas de todas as escolaridades, falando um português diferente do que eu aprendi na escola. E os compreendo a todos, e eles a mim. Quando me for à Portugal, ou Moçambique e Angola, que tanto amo à distância, sei que trocaremos mais do que gramáticas: será nossa comunhão de sentimentos que falará mais alto, impecavelmente correta.
Parabéns!

Moacy Cirne disse...

Grande escritor, o Mia Couto. Grande língua, a portuguesa. Grande bobagem, o acordo ortográfico.

E um grande abraço, o meu.

Meg disse...

Amaral,

Adorei este texto, porque sou fascinada pela nossa língua.

Um abraço

Meg disse...

Maria,

Sou da tua opinião, por isso o trouxe aqui mais uma vez.

Um beijo

Meg disse...

São,

Este texto já tem aí uns dez anos, mas continua actual. E para mim, o Mia é sempre oportuno.

Um beijo

Meg disse...

Chanesco,

Que prazer em tê-lo de novo na nossa companhia! Será para valer?

Quanto ao acordo, tenho as mesmas dúvidas.Vou pelo Mia

Um abraço

Meg disse...

António B.S.

Pensando bem, acho que os brasileiros têm razão... idioma é que deve ser.

Também eu gosto do Mia por inventar muitas palavras e tornar
o nosso idioma ainda mais rico e dinâmico.

Um abraço

Meg disse...

Caro Moacy,

Sobre o Mia estamos de acordo,
Sobre o acordo ortográfico, pelo menos para a maioria das pessoas que conheço, é um autêntico disparate... eu não vou seguir.

Um abraço

Agulheta disse...

Meg! A nossa língua e para mim é esta que sei me exprimir no meu sentir,e como diz e bem Mia Couto,por novo acordo otográfico nunca deixarei de escrever como gosto e sei e devo?
Beijinho fica bem.

Mariazita disse...

Querida Meg
Tens toda a razão - não se pode dar por perdido o tempo gasto na leitura deste texto.
Eu sou suspeita a falar...por dois motivos:
- sou uma leitora compulsiva (nunca lamento o tempo usado (não gasto...) na leitura;
- gosto imenso de Mia Couto.
De factto o texto está muito bom.
"...defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias..." - magistral!

Uma boa semana.

Beijinhos
Mariazita

Pata Negra disse...

Li tudo, demorei algum tempo, agora já não tenho tempo para comentar.
Se li tudo foi porque não fui capaz de deixar de ler -
um ab

Filoxera disse...

Ninguém como Mia Couto para reinventar a nossa língua, torná-la evolutiva, imaginativa, se assim se pode dizer.
Beijos.

Peter disse...

Destaco:

“A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida.”

A propósito de:
“Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.”
Os Macuas distinguem entre “fazer amor” e “fazer sexo”. Aqui dizem “fazer máquina”.

Meg disse...

Lisa,

Pois eu estou contigo... também não vou deixar de escrever como aprendi...
Que o façam as novas gerações, que já aprendem a nova grafia.
Um beijo

Meg disse...

Mariazita,

O tempo que leva a ler este texto é um tempo bem gratificante, pois é uma homenagem de Mia ao nosso idioma.
Temos todo o direito de o defender.

Um beijo

Meg disse...

Amigo Pata Negra.

E se ler era o mais importante...
fiquei feliz.

Um abraço

Meg disse...

Filoxera,

Mia tem essa capacidade e esse mérito... trazer ainda mais dinamismo e vivacidade à nossa língua.
É um prazer a sua leitura.

Um abraço

Meg disse...

Peter,

Também desconhecia "essa" dos Macuas.

Sempre a aprender.

Um abraço

Papoila disse...

Querida Meg:
Fabuloso artesão de palavras que as namora desde menino e brinca com elas... O Mia é o Mia, com ou sem acordo...
Beijos

Anónimo disse...

Que poderei dizer mais...... adorei.

Meg disse...

Papoila,

Sou pelo Mia, contra o acordo.
Gosto do idioma assim tratado... com amor.

Um abraço

Meg disse...

Tibéu,

Seja benvinda a este espaço.
E ainda bem que gostou.

Um abraço

Meg disse...

Profeta.

Benvindo e obrigada pelo poema.

Boa semana

Anónimo disse...

meg:
bem humorado o mia couto.
um beijo.
romério

bettips disse...

Meggy: já tinha cá estado mas não sei porquê, há certos lugares amigos que me mandam a ligação abaixo! E o teu é um deles... Desculpa-me se não me vires, mas pensa-me como te penso.
Estás (há mais de 2 anos...) no meu horizonte. E aprendi tantas coisas diferentemente, acústicas e das línguas vivas (como esta hoje, que me encanta!) contigo. E fizeste aninhos e tudo...
Beijinhos e abraços sinceros a ti.

Bípede Implume disse...

Mais facilmente seguiria a escrita do Mia Couto do que o novo acordo ortográfico. Este texto é bem divertido.
Beijinhos e boa semana.

Carminda Pinho disse...

Meg,
O Mia tem uma escrita que me apaixona.
Este naco de prosa, é um para mim uma delícia.

Beijos

Meg disse...

Romério,

Bem humorado e bem saboroso.
Mia trata o nosso idioma com muito amor. Da maneira que eu gosto.

Um beijo

Meg disse...

Querida Bettips,

Acontece o mesmo comigo, tenho amigos onde tenho de entrar por links de outros blogs. Não abrem, simplesmente.

Mas eu sei que estás sempre por aqui, minha amiga. E já lá vão dois anos, é verdade.

Um beijo

Meg disse...

Isabel,

Pois como já disse atrás, também eu sou uma renitente ao novo acordo ortográfico.
Não é uma delícia ler textos como este?

Um beijo

Meg disse...

Carminda,

É como dizes, que sei que também gostas do Mia Couto.
Por isso me atrevi a publicar este texto apesar de um pouco longo...

Um beijo

Maria Clarinda disse...

(...)A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida.



Adorei (re)ler este texto de Mia Couto!
E como ele faz uma análise poética, mas vibrante do tema.
Jinhos mil

MPS disse...

Cara Meg

Secundando o Mia Couto: será que quem fez o acordo anda acordado?

Só os poetas como ele sabem, assim tão bem, brincar com a língua!

Um abraço

Meg disse...

Maria Clarinda,

Mia é realmente um artesão das palavras.
E como brinca com o nosso idioma?

Um beijo

Meg disse...

MPS,

Eu do acordo nem quero falar, para mim não existe... estou na idade em que já posso recalcitrar sem dar satisfações.

E por isso dou asas ao carinho tão grande que tenho pela escrita do Mia Couto.

Um abraço...

Zé Povinho disse...

Este texto do Mia ainda não tinha chegado à minha palhota, mas continuo a gostar do modo como brinca com a língua, a nossa língua.
Abraço do Zé

Menina Marota disse...

Mia Couto... só ele para escrever assim... Adorei!

Beijinhos e grata pela partilha

Maria Faia disse...

Olá Amiga,

Interessante o texto de Mia Couto que partilhas connosco.
Não conhecia mas, acho interessante a forma como ele sente a nossa língua, com ela ora brincando, ora rebuscando...
Como sempre, gostei de te visitar.

Deixo-te um beijo amigo, com votos de Bom Fim de Semana,

Maria Faia

Meg disse...

Caro Zé,
Eu sei que é um pouco longo mas acho que o texto merece ser lido.
Pela nossa língua.

Um abraço

Meg disse...

Menina Marota,

Sim, é um texto bem "saboroso"... como só o Mia sabe escrever.

Um abraço

Meg disse...

Maria Faia,

Foi o que pensei quando resolvi publicar o texto.

Bom fim de semana para ti também, Maria.

Um beijo

duarte disse...

hello meg
estou net'amente r€duzido.
deve-se às "finanças" ou aos "aldraroubanços".
está interessante este texto. concordo com a dinámica da língua, e com os neologismos.Só assim se transmitem realidade novas.
abraço do vale