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30 de novembro de 2010

Casino ou... bordel europeu!

"The return of the flame" de Rene Magritte


E no entanto o país, meu Senhor,
é uma beleza! Uma beleza! Encantador!
Trinta portos ideais, um céu azul marinho,
A melhor fruta, a melhor caça, o melhor vinho,
Balsâmicos vergéis, serranias frondosas,
Clima primaveril de mandriões e rosas,
Uma beleza! Que lhe falta? Unicamente
Oiro,vida, alegria, outro povo, outra gente.
Raça estúpida e má, que por fortuna agora
Torna habitável este encanto…indo-se embora!
Deixe morrer, deixe emigrar, deixe estoirar:
Dois boqueirões de esgoto,- o cemitério e o mar.
Que precisamos nós? Libras! Libras, dinheiro!
Libras d’oiro a luzir! Onde as há? No estrangeiro?
Muito bem; o remédio é claríssimo, é visto;
Obrigar o estrangeiro a tomar conta disto.
Impérios d’além-mar, alquilam-se, ou então
Sorteados,- em rifa, ou à praça,- em leilão.
E o continente é dá-lo a um banqueiro judeu,
Para um casino monstro e um bordel europeu,
Fazer desta cloaca, onde a miséria habita,
Um paraíso por acções,
- cosmopolita...

Guerra Junqueiro
Pátria
(1896)


28 de novembro de 2010

Súbita, uma angústia...

Egon Schiele, 191o


Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?


Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...


Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,


Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!


Dêem-me de beber, que não tenho sede!


Álvaro de Campos
(11-4-1928)


22 de novembro de 2010

Ora porra! - Manifesto de Álvaro de Campos


Gustave Courbet

Ora porra!
Nem o rei chegou, nem o Afonso Costa morreu quando caiu do carro abaixo!


E ficou tudo na mesma, tendo a mais só os alemães a menos...
E para isto se fundou Portugal!

Arre, que tanto é muito pouco!
Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
Ponto.


Agora começa o Manifesto:
Arre!
Arre!
Oiçam bem:
ARRRRRE!


Ora porra!
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.


Álvaro de Campos
Poesia

Assírio & Alvim

15 de novembro de 2010

Em Abril Dilacerado

A papoila, óleo de Maria Azenha


em abril dilacerado
era uma vez uma voz
que habitava uma casa
e dentro desta casa
habitava uma menina sem voz
e dentro da menina
uma cidade sem janelas
e dentro da cidade
uma guitarra enorme

era um país sem asas
um país sem norte
um país sem casas
um país sem voz

e tudo o que nos mata
a palavra cobre
e tudo o que nos move
a palavra ata

e todos os jardins
foram arrancados
por causa da memória
deste país tão pobre

era um país sem asas
um país sem norte
um país sem casas
um país sem voz

e as lágrimas da menina
engoliram a cidade
em abril dilacerado
com arames em volta

Maria Azenha
[2003]

8 de novembro de 2010

Democracia

Republicação... porque sim!!!

Ema Berta
 

Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incensoe
haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»


Nuno Júdice
A Matéria do Poemas, Dom Quixote, 2008, p. 45

3 de novembro de 2010

Camões e a tença




Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou seu ser inteiramente
E aqueles que invocaste não te viram

Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto
Irás ao Paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente


Sophia de Mello Breyner Andresen