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29 de junho de 2009

Digo: o amor...

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Digo: o amor. Há palavras que parecem sólidas, ao contrário das outras que se desfazem nos dedos Solidão. Ou ainda: medo. As palavras, podemos escolhê-las, metê-las dentro do poema como se fosse uma caixa. Mas não escondê-las. Elas ficam no ar, invisíveis, como se não precisassem dos sons com que as dizemos .
. Agora, o efeito das palavras. A sua rotação na cabeça, e pelas artérias, até ao centro: o coração. Outra palavra com que se diz: o amor. Mas não falo de sinónimos; de resto, há palavras que escondem o contrário do que querem dizer, e só as conhece quem ama, se a vida não o levou por caminhos confusos. . . Amo-te. Também podia dizer: a solidão que te amo, ou o medo de te amar. A partir de uma palavra tudo se pode fazer, numa página, quando o que aí está é um poema. No entanto essas palavras conduzem-me até ti, isto é, fazem-me viver por dentro delas. É por isso que tudo se confunde: o amor, a solidão, o medo, e até a vida, que também é uma palavra. . . Nuno Júdice . in Poemas em voz alta . .
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20 de junho de 2009

Refugiados, o rosto da desumanidade...

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Pedem pão e a certeza de comê-lo
Refugiados vagueiam quem os quer? São aos milhões por esse mundo fora são indesejáveis a criança e a mulher refugiados indefesos esperam sua hora. Pedem o pão e a certeza de comê-lo em paz e sem constrangimento esperam uma mão que lhe toque no cabelo chorando no intimo o seu desalento. Não pedem aos governantes uma flor pedem a paz, um abrigo, o simples respirar duma esperança que lhes traga o amor a dignidade de viver e poder amar. Em toda a parte vagueiam refugiados são a mancha de quem não sabe governar vitimas do egoísmo e círculos viciados são aos milhões e não param de aumentar. Pedem o pão e a certeza de comê-lo respiram ameaças e uma atmosfera vã clamam por amor e a certeza de obtê-lo na expectativa do que trará o amanhã José Valgode . . .

14 de junho de 2009

Confidência, de Mia Couto

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Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
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Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
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Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
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Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
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No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
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Mia Couto
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8 de junho de 2009

HOJE... Estou vivo e escrevo sol

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O Sol, de E. Munch
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Estou vivo e escrevo sol
Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida
melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
António Ramos Rosa,
in "Animal Olhar"
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6 de junho de 2009

Novos tempos.... ainda as crianças

. . A Bola O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola. O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando não gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa. - Como e que liga? - perguntou. - Como, como é que liga? Não se liga. O garoto procurou dentro do papel de embrulho. - Não tem manual de instrução? O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros. - Não precisa manual de instrução. - O que é que ela faz?- Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela. - O quê?- Controla, chuta... - Ah, então é uma bola. - Claro que é uma bola. - Uma bola, bola. Uma bola mesmo. - Você pensou que fosse o quê? - Nada, não.O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina. O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto. - Filho, olha. O garoto disse "Legal" mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa idéia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar. Fernando Veríssimo . . .

1 de junho de 2009

Apenas um poema singelo...

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Meninos, de Portinari .
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O Menino Grande
Também eu, também eu. joguei às escondidas, fiz baloiços, tive bolas, berlindes, papagaios, automóveis de corda, cavalinhos… Depois cresci, tornei-me do tamanho que hoje tenho; os brinquedos perdi-os, os meus bibes deixaram de servir-me. Mas nem tudo se foi: ficou-me, dos tempos de menino esta alegria ingénua perante as coisas novas e esta vontade de brincar.
Vida!, não me venhas roubar o meu tesoiro: não te importes que eu ria, que eu salte como dantes. E se eu riscar os muros ou quebrar algum vidro ralha, ralha comigo, mas de manso… (Eu tinha um bibe azul… Tinha berlindes, tinha bolas, cavalos, papagaios… A minha Mãe ralhava assim como quem beija… E quantas vezes eu, só pra ouvi-la ralhar, parti os vidros da janela e desenhei bonecos na parede…)
Vida!, ralha também, ralha, se eu te fizer maldades, mas de manso, como se fosse ainda a minha Mãe…
[Sebastião da Gama]
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