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27 de dezembro de 2008

Receita de Ano Novo


A todos os amigos que por aqui passam, . desejo um ANO NOVO FANTÁSTICO. . A TODOS... FELIZ ANO NOVO! . Meg

Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
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22 de dezembro de 2008

Dia de Natal

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A todos os amigos que por aqui passam,
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desejo um BOM NATAL e um ANO NOVO FANTÁSTICO.
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A TODOS... FESTAS FELIZES!
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Meg

Dia de Natal
Hoje é dia de era bom. É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças. É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem, de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria. Comove tanta fraternidade universal, da matutina luz É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos, entoa gravemente um hino ao Criador. E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes. De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético. (Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.) Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante. Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante. Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica. Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores. A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar. Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena. Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta. De manhãzinha, salta da cama,corre à cozinha mesmo em pijama. Ah!!!!!!!!!! Na branda macieza aguarda-o a surpresa do Menino Jesus. Jesus o doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura, veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora. Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia! O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas: Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá. Já está! E fazia-as erguer para de novo matá-las. E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas. Dia de Confraternização Universal, Dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas. É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas. [António Gedeão] . . «««o»»» . . .

17 de dezembro de 2008

Eu não tenho poema de Natal!

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"Invisível Senhor Dos Meninos De Rua"


Eu não tenho poema de Natal

Porque a mim me doi tanto

Esta época

De festas e prendinhas

Que por ser alegre para os outros

É triste para mim

Orfão indigente

Desprezado

Abandonado à sorte e pela sorte

Sem norte nem sul

Sem beira nem eira

Sem colo nem mãe

Sem pais nem família

Sem afecto nem carinho

A não ser da mão invisível

Da caridade

Que não sei bem ainda

Se terá ou não

O indelével toque de mãos

Do Invisível Senhor da Criação...

Que me faz sonhar

Viver e ter esperança

Ter fé em sua luz..

A quem

Apesar de tudo

E para além de mim

Fervorosamente

Amo...



Escrito por Manuel de Sousa, poeta, em Luanda, Angola, a 22 de Dezembro de 2004...
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Em homenagem a todos os meninos e meninas, crianças ainda, e sobretudo, àquelas que, infelizmente e por várias circunstâncias dos seus destinos, foram “atiradas” para as ruas sombrias da amargura e do desprezo, onde muitas vezes vivem da violência e da brutalidade urbanas e da insensibilidade geral da sociedade, como seres “invisíveis” aos restantes que passam...
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12 de dezembro de 2008

Eu sei mas não devia

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“Não acredito que seja o hábito que faz o leitor.
E sim, o leitor que, por paixão, estabelece o hábito”.
Marina Colasanti
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Eu sei mas não devia Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá pra almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer filas para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra. A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes. A abrir as revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e a ver comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. A contaminação da água do mar. A lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma. . Marina Colasanti Eu sei, mas não devia" , Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996 . . .
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. Marina Colasanti (Asmara (Etiópia), 1937) chegou ao Brasil em 1948, e a sua família radicou-se no Rio de Janeiro.
Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna.
Nos anos seguintes, actuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e argumentista.
Em 1968, foi lançado o seu primeiro livro, Eu Sozinha; de lá para cá, publicaria mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta.
Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992.
Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?.
Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992). Nelas, a autora reflecte, a partir de factos quotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade.
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8 de dezembro de 2008

Efeméride - Florbela Espanca

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a 8 de Dezembro de 1894,
Florbela Espanca nasceu no Alentejo, em Vila Viçosa.
Morreu em Matosinhos em 1930.
[...]"Personalidade excepcional, de profunda riqueza interior, fez poesia da sua experiência de mulher, com superior consciência artística – poesia generosa, convulsa e ardente, em que toda a gama do amor se desdobra, da exaltação dos sentidos ao apetite de sacrifício, aos momentos de plenitude e de beatitude aos extremos de ternura e aos de desencanto e sofrimento, ao ressaibo amargoso das análises lúcidas, à consciência da solidão na união, da dolorosa, inelutável alteridade.Através de estados excessivos de transporte e de aniquilamento, numa vibração prodigiosa, que raros poetas atingem, mesmo numa lírica caracterizadamente emocional como a nossa, Florbela Espanca reflecte uma fundamental insatisfação – ânsia de absoluto, de infinito."[....]
In: J. Prado Coelho - Dicionário de Literatura - Figueirinhas – 1978
Florbela Espanca, by Bottelho
OS MEUS VERSOS
Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei,
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasga os meus versos... Pobre endoidecida,
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...
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Florbela Espanca
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4 de dezembro de 2008

Canto de nascimento

“Maternidade”, 1935, de Almada Negreiros Centro de Arte Moderna Fundação Calouste Gulbenkian Canto de nascimento Aceso está o fogo prontas as mãos o dia parou a sua lenta marcha de mergulhar na noite. As mãos criam na água uma pele nova panos brancos uma panela a ferver mais a faca de cortar Uma dor fina a marcar os intervalos de tempo vinte cabaças deleite que o vento trabalha manteiga a lua pousada na pedra de afiar Uma mulher oferece à noite o silêncio aberto de um grito sem som nem gesto apenas o silêncio aberto assim ao grito solto ao intervalo das lágrimas As velhas desfiam uma lenta memória que acende a noite de palavras depois aquecem as mãos de semear fogueiras Uma mulher arde no fogo de uma dor fria igual a todas as dores maior que todas as dores. Esta mulher arde no meio da noite perdida colhendo o rio enquanto as crianças dormem seus pequenos sonhos de leite. Ana Paula Tavares (O lago da lua) «««««o»»»»»
Ana Paula Tavares nasceu no Lubango, Huíla, Sul de Angola, em 1952. É historiadora, tendo obtido o grau de Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A autora vem atuando em várias atividades ligadas à literatura e à história africana. Foi membro do júri do Prêmio Nacional de Literatura de Angola nos anos de 1988 a 1990 e responsável pelo Gabinete de Investigação do Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica, em Luanda, de 1983 a 1985. Em 1999, publicou vários estudos sobre a história de Angola na revista "Fontes & Estudos", de Luanda.
Obra
Ritos de Passagem (1985)
O Sangue da Buganvília (1998)
O Lago da Lua (1999)
Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001) - obra galardoada com o Prémio Mário António de Poesia 2004 da Fundação Calouste Gulbenkian
Ex- votos (2003)
A cabeça de Salomé (2004)- crônicas
Os olhos do homem que chorava no rio (2005)- (co- autor: Manuel Jorge Marmelo)
Manual para amantes desesperados (2007)
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29 de novembro de 2008

Metamorfose

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Jacarandás
METAMORFOSE
ao poeta José Craveirinha
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
os jacarandás explodiam na alegria secreta
de serem vagens e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não
e a sete de Março chama-se Junho desde um dia de há muito
com meia dúzia de satanhocos moçambicanos
todos poetas gizando a natureza e o chão no parnaso das
balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa
a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos
e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
Aos Gritos
Luis Carlos Patraquim (in "Monção", Maputo/Lisboa, 1981)
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Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique, em 1953.
Colaborador do jornal A Voz de Moçambique, refugia-se na Suécia em 1973. Regressa ao país em Janeiro de 1975 integrando os quadros do jornal A Tribuna.
Membro do núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC) onde se mantém, de 1977 a 1986, como roteirista/argumentista e redator principal do jornal cinematográfico Kuxa Kanema.
Criador e coordenador da Gazeta de Artes e Letras (1984/86) da revista Tempo. Desde 1986 residente em Portugal, colabora na imprensa moçambicana e portuguesa, em roteiros para cinema e escreve para teatro. Foi consultor para a Lusofonia do programa Acontece, de Carlos Pinto Coelho e é comentarista na RDP-África.
Publicou Monção (1980); A inadiável viagem (1985); Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1992); Mariscando luas (1992), em parceria com Chichorro e Ana Mafalda Leite; Lidemburgo Blues (1997) e O osso côncavo, 2005.
Foi distinguido com o Prêmio Nacional de Poesia, Moçambique, em 1995
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25 de novembro de 2008

Mas que sei eu

. . . Porque no meu íntimo irrompeu um Outono, escuro, frio...
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. Porque me sinto como as folhas arrastadas

por um vento particularmente agreste...
. Apetece-me este poema.... .
. Porque estou triste... . .


Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo

21 de novembro de 2008

Fome

 
 
Fome: Agora e Sempre
 
Fome aqui agora e permanente
Continua em muitos continentes
Milhões vão dormir de estômago vazio
Outros tantos de maletas estão contentes
Com o dinheiro da corrupção.
 
Fome em toda a parte e em todas as gentes:
Clamando com fome de justiça
Que os humanos construíram postiça
E que explora o numerário,
As licitações o povo livre e sem salário.
Fome aqui e agora, a mil á hora
Ou a passo de caracol.
 
Há fome de todo o tipo. De mandatos,
Fome de cães e gatos e executivos
A fome de justiça des.engana os incautos,
Priva os justos, e os explora vivos,
Também depois de mortos muitos
Também pagam para ter um lugar no céu.
 
A fome persiste. Quem a pode saciar?
A ciência, ou a história?
 
A ciência por vezes tornou-se fraude
E a história, nos milénios tornou-se inglória!
Fome da verdade, poucos a sentem!
Os humanos sentem a fome que os explora
Embrutece, que perdura e os devora.
 
José Valgode
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José Valgode nasceu na Vila de Santa Cruz da Trapa (S. Pedro do Sul) em 30 de Agosto de 1947. Começou a escrever os primeiros versos aos 9 anos de idade, quando ainda frequentava a Escola Primária. Com dezasseis anos foi para Lisboa. Foi aqui que conheceu muitos dos grandes Poetas Portugueses da época, muitos deles já falecidos. Em Abril de 1969 embarcou para Timor, onde permaneceu até Junho de 1971, período de quase 3 anos durante o qual escreveu muitos dos seus poemas. Em Timor colaborou no jornal “Província de Timor” e declamava Poesia entre seus camaradas de então. Colaborou em diversos outros jornais da época com sua Poesia e com artigos de Opinião. Alguns dos seus poemas estão em vários jornais virtuais, como no “Jornalecos”.
José Valgode reside na Alemanha desde 1972. Colabora actualmente em muitos jornais Portugueses, entre os quais o único jornal português publicado na Alemanha, o “ Portugal Post”. Tem cinco livros publicados, entre os quais quatro com a recolha dos cinquenta anos em que escreveu poesia. . . . .

16 de novembro de 2008

Vestia um Vestido de Bailarino

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Paris through the window, 1913-Chagal
Vestia um Vestido de Bailarino
Vestia um vestido de bailarino quando, logo ao segundo dia, trocando cêdês e livros de poesia, me declarou a sua amizade.
Passávamos tardes inteiras a discutir fantasmas, asmas,
histórias da infância e coisas da beleza grega e pós-moderna.
Dou graças por viver em tempos de correio electrónico, arrumo
tudo nas pastas e depois não há provas. Nunca mais se sentirá
o cheiro do fogo queimado, as folhas negras, o prazer do fósforo.
Num rápido gesto tudo para sempre apagado e a minha memória.
dura o tempo de uma tecla, nem de versos se vai lembrar.
Mas quando o amigo, enfim, cansado de eu não lhe ligar, decide
pôr tudo em pratos limpos, eu coro de vergonha porque
amizade para mim não tem de ser ir para a cama. Isto que toda a gente
sabe fora dos poemas faz tremer a minha mão pelo lado do vulgar.
Andaste por beja, braga, bordéus e alexandria a engatar marinheiros
e eu aqui, gostando de ti, com saudades de ti, mandando-te dinheiro.
Uma vez por outra ia também um poema, daqueles ambíguos
que tu nuncas percebias. Toma cuidado, não apanhes sida.
Quando recebi a notícia da tua morte vi-me culpado por não ser
da tua onda, meti-me no avião e, tal como tínhamos combinado,
vesti-te a rigor e pus-te brilhantina, um livro em branco e uma caneta.
Quem sabe se na morte não terei tempo para ser escritor. .
. Helder Moura Pereira
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"Lágrima"
Assírio & Alvim, 2002
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11 de novembro de 2008

Tempo Fluvial

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Tkachev Alexei , Sergey Alexei «Summer», 1991

Tempo Fluvial
Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês


o livro, como se o tempo tivesse parado
. e o rio não corresse pelos teus olhos.
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Nuno Júdice
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[Imagem retirada de "Em gestão corrente ...como o País..."] . . .
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6 de novembro de 2008

Quando te vi ...

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Tomando Chá, de Henrique Medina



Quando te vi senti um puro tremor de primavera

e a voluptuosa brancura de um perfume

No meu sangue vogavam levemente


anémonas estrelas barcarolas

O silêncio que te envolvia era um grande disco branco

e o teu rosto solar tinha a bondade de um barco

e a pureza do trigo e de suaves açucenas

Quando descobri o teu seio de luminosa lua

e vi o teu ventre largamente branco

senti que nunca tinha beijado a claridade da terra

nem acariciara jamais uma guitarra redonda

Quando toquei a trémula andorinha do teu sexo

a adolescência do mundo foi um relâmpago no meu corpo

E quando me deitei a teu lado foi como se todo o universo

se tornasse numa voluptuosa arca de veludo

Tão lentamente pura e suavemente sumptuosa

foi a tua entrega que eu renasci inteiro como um anjo do sol
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.António Ramos Rosa,
in "O teu rosto", 1994
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2 de novembro de 2008

Setembro

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Red vineyards, Vincent van Gogh

Vincent van Gogh, Autumn Landscape with Four Trees
Setembro agora o outono chega, nos seus plácidos meneios pelas vinhas, um dos vizinhos passa um cabaz de maçãs por sobre a vedação: redondas, verdes, o seu perfume vai dentro de quinze dias ser mais forte. a noite cai mais cedo e apetece guardar certos vermelhos da folhagem e amarelos e castanhos nas ladeiras de setembro. a rádio fala no tempo variável que vem aí dentro de dias. talvez caia uma chuvinha benfazeja, a pôr no ponto certo os bagos de uva. e há poalhas morosas, mais douradas. aproveita-se o outono no macio enchimento dos frutos para colhê-lo a tempo. devagar, devagar. é mais doce no outono a tua pele. Vasco Graça Moura
in "Poesia 2001/2005", Quetzal Editores, 2006
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28 de outubro de 2008

Hino

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“Minha maior alegria
minha glória humilde e nua
é ver a minha poesia
fazer ciranda na rua”
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J.G.de Araújo Jorge
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[Ema Berta]
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Hino
Quisera que meus braços fossem extensos e infinitos
como os horizontes
para abraçar todas as terras...
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Meu coração universal conhece todos os idiomas
e os meus olhos trouxeram a cor dos mares
que contornam todos os países...
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Meus pés não distinguem no atrito das terras
as diferenças de raças
e as minhas mãos não distinguem
no aperto de outras mãos
as diferenças de cores...
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Meus pés só distinguem os caminhos ásperos
dos caminhos suaves
e as minhas mãos só distinguem
as mãos rudes que trabalham
das mãos macias que vegetam...
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Quisera abrir os braços
e envolver todas as terras e todas as pátrias
e ensinar a todos os homens
que a luz vem de um único sol
e que o amor deve unir todas as mãos ásperas
para que todos os caminhos sejam suaves...
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J.G. de Araújo Jorge
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José Guilherme de Araújo Jorge nasceu na Vila de Tarauacá, no Estado do Acre, aos 20 de maio de 1914. Faleceu no dia 27 de janeiro de 1987..
Ainda jovem iniciou-se na poesia. . Além de escritor, locutor e redator de programas radiofônicos, professor de História e Literatura, líder estudantil, tinha política em suas veias. Durante a ditadura estadonovista, a sua poesia levantava-se como um protesto. Foi, por isso, muitas vezes preso.
Além da poesia social, os versos líricos tornam-no um dos poetas mais lidos do Brasil atual.
Como jornalista, escreveu nos jornais "Correio da Manhã", "A Nação", "A Manhã", e "Tribuna da Imprensa", além das revistas "Carioca", "Vamos Ler", "Letras Brasileiras" e outros.
Com Eterno Motivo (1943), obteve o prêmio Raul de Leoni, da Academia Brasileira de Letras. Canto da Terra e Estrela da Terra, impregnados de amplo sentido humano e social, são livros que lembram Garcia Lorca e Castro Alves.
Escreveu também: Meu Céu Interior, Amo, Cântico, Harbas Submersas e outros.
Publicou mais de quinze livros de poesia.
Ficou conhecido como "O poeta do povo e da mocidade".
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25 de outubro de 2008

Balada do Roer dos Ossos

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Eyes, de Lawrence
Balada do Roer dos Ossos
Roer um osso — humano, se possível,
é um sonho português de sobrevida,
após anos e anos de despirem
com os olhos as mulheres que no Rossio
por diante deles passam e das mãos
movendo-se contínuas pelo bolso
das calças mais viris da cristandade.
Roer um osso — humano, se possível,
de mãe, de pai, de irmã, de tio ou prima,
de amantes ou de esposas, filhos, netos,
ou de inimigos ou de amigos mesmo,
ou do vizinho em frente, ou dum retrato
só visto no jornal, ou criatura
desconhecida inteiramente — um osso.
Roer um osso — humano, se possível,
mas pode ser de vaca ou de carneiro,
ou porco ou gato ou cão ou papagaio,
ou à sexta-feira bacalhau ou peixe
em espinhas esburgadas que recordam
o rosto doce ou monstruoso odiado
na vénia às Excelências brilhantinas.
Roer um osso — humano, se possível,
seja fingido mesmo, de borracha
para durar mais tempo que não passa,
ou de cimento pra quebrar-se os dentes
no gozo de moê-lo cuspinhado
(e o pensamento em furibunda mão
que excita ansiosa as impotentes raivas).
Roer um osso — humano, se possível,
é o sonho português de sobrevida.
[Jorge de Sena]
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