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23 de julho de 2008

Poluição



A cidade não é o nosso orgulho
os aviões não são pombas brancas
estou doente
na minha frente os automóveis brilham e uma mulher
volta para mim o rosto
tem os óculos no alto da cabeça
como Gago Coutinho após a Travessia
e eu olho para o chão
e depois para o céu: entre o vómito matinal de um bêbedo e Deus
já quase nada existe
Deus está debaixo dos tectos enrolado em mansos cobertores
não há saída nenhuma para ele pois que se deixe estar:
este caminho
esta cidade
são de facto trabalho para o Homem
Deus limitou-se a apostar no Homem
.
Dois generais nunca discutem por causa de uma rosa
ensinou-me meu pai há muito tempo
quando podava a vinha
e eu ia enchendo os bolsos
com tangerinas para dar ao Careca
que escolhia sempre a linha
quando íamos descalços jogar o futebol
.
A cidade a esta hora está a ruir por dentro
mas está tudo bem
é óptimo isto tudo
eu sigo embatucado pela margem do Tejo
sou eu agora quem aposta nas gaivotas
contra a nafta
.
vejo passar um petroleiro grego − o Parthénon − será? por ali fico duas ou três horas a olhar as águas
o Tejo é hoje uma maldita avenida
e há cada vez menos árvores
.
o Tejo é um esgoto
.
o Tejo é um esgoto
.
oh por favor salvemos
.
ao menos
.
as gaivotas
.
Nas livrarias vendem-se pastéis de nata e Roland Barthes
é moda, não se admirem:
duzentos mil exemplares de pastéis de nata
contra quinhentos livros do António Ramos Rosa
e as pessoas entram e escolhem
invariavelmente
os pastéis de nata
e lambem-se gulosas
satisfazem a sua opção crítica
cumprimentam e engordam o livreiro
generosamente
.
Hoje ainda há Obélix e Kafka
Hoje ainda há Hamburgers e Travolta
Hoje ainda há Chiclets
Hoje ainda há
Hoje
.
Volto de novo ao Tejo
às suas margens
descalço como Leanor
os meus sapatos ainda lá estão
só a verdura não existe
.
e agora mais confortável do que nunca
com estes sapatos sujos
cheios da nossa civilização até aos atilhos
caminho devagar para o ventre da cidade
fumando um cigarro sem filtro
e pontapeio com um misto de impotência e de desprezo
os caixotes de lixo
os pneus dos automóveis estacionados
sabendo que vou morrer
inevitavelmente
.
Ó mar da minha angústia diz-me:
a felicidade é uma árvore?
.
.
[Joaquim Pessoa]
.
.
in «Os Dias da Serpente»,
125 Poemas (Antologia Poética), 1989
.
.
.
.

26 comentários:

MPS disse...

Cara Meg

Eu trouxe o Ramos Rosa:

(...)
"Entre os flancos do mundo o poema é um cavalo ébrio
com um único olho de cristal por onde o sol se engolfa
e cuja luz se repercute em delicadas linhas
da energia unânime do seu peito inacabado."

Ramos Rosa in "Deambulações Oblíquas" (que pena a caixa de comentários quebrar os versos...)

Gosto particularmente de Joaquim Pessoa (e de Ramos Rosa, como poder ver-se). Neste seu poema - menos musical mas não menos belo - um grito de alerta que não atinge os comedores de pastéis de nata. esses contentam-se em ver tudo por intermédio do pc.

Um abraço
___
P.S. Não se preocupe com as visitas. Nisto dos blogues ninguém deve esperar visitas porque visitou. Espero eu! O que importa é que a Meg anda ocupada feliz, embora cansada.

José Lopes disse...

Eu também prefiro a natureza rude à cidade poluida, e contemplar a água em vez das montras de um qualquer centro comercial.
Não conhecia o poema e também conhecia muito pouco do autor.
Cumps

Maria disse...

Querida Meg

Não tens de nos responder, se não tiveres tempo.
Dá-nos só, de vez em quando, mais poesia como esta....
... adoro Joaquim Pessoa!

Beijinhos

Agulheta disse...

Meg. Grande Joaquim Pessoa! Nada mais real e valiosos para alertar as mentes,que nada pensam basta ler e ouvir como tudo se destrói a cada instante,este poema foi sem dúvida algo de belo.Cheguei ontem mas vinha cansada,agradeço a tua visita as palavras,e amizade como sempre,eu volto lá para o fim semana ou seja sábado.
Beijinho Lisa bfs

Amaral disse...

Meg
Muito bem. Excelente o poema.
Bjinho

sol poente disse...

MEG
O mar da minha angústia diz-me: a felicidade ainda existe? Se sim tragam-se um pouco de céu e um livro dos que gosto ler à sombra duma árvore.
Abraço, Meg

Lídia

Meg disse...

Querida MPS,
Quantas palavras bonitas para um poema de que eu tanto gosto.
De ler lentamente, em voz alta, para me ouvir, na expectativa vã de que me escutem com atenção. Os dos pastéis de nata.

Um abraço amigo

Meg disse...

Querido Guardião,

Vale a pena conhecer o Joaquim Pessoa... continuamos a precisar destes aletrtas cada vez mais.
Um abraço amigo

Meg disse...

Maria,

Tem mesmo de ser assim, minha amiga.
Orgulho-me tanto dos Amigos!

O pior ainda está para vir e chama-se Agosto, depois tenho o Inverno para descansar.

Beijinhos

Meg disse...

Lisa.
Tu o sabes muito melhor que muita gente.
E as chamadas de atenção nunca são demais.

Um abraço

Meg disse...

Caro Amaral

Obrigada pela visita, meu amigo.
Este poema é uma lição.
Um abraço

Meg disse...

Lídia,
Claro que existe e bem perto de nós.
Mas fingimos que não a conhecemos, desprezamo-la até ao dia eu que fiquemos soterrados sob o lixo que produzimos.
Um abraço

Bípede Implume disse...

Venho deixar-te um abraço e desejar-te muita genica para continuares a deixar-nos mensagens tão importantes mesmo com muito trabalho.
Tudo de bom e grande abraço.

Carminda Pinho disse...

Tanta poluição, Meg.
Temos que ajudar a erradicá-la. Só a que perssiste em algumas cabeças, é impossível.

Joaquim Pessoa, num poema algo inquientante, mas são assim mesmo os poetas.
E eu gosto dele.
Beijos

bettips disse...

Como são belas as tuas escolhas e que fácil me é ir pela mão-poeta!
Deixa-nos este rasto de ti, que folheamos com os olhos.
Bj

Anónimo disse...

A poluição é algo que todos podemos combater, começando por pequenos gestos e alertar os governos para que façam o mesmo. Desculpa não passar aqui faz tempo, mas a minha vida anda em stress permanente. Kiss e Bom Fim de Semana

Meg disse...

Bípede Implume,

Vou tentando, minha amiga, mas está mais difícil do que pensava.
Uma boa semana para ti.
Um abraço

Meg disse...

Carminda,

A brincar que o digas, este é um dos grandes problemas actuais.
Produzimos como nunca, e muitas vezes á apenas uma grande falta de civismo...
Uma boa semana
Um abraço

Meg disse...

Querida Bettips

As tuas palavras são um bálsamo...
sempre.
Mil beijos

Meg disse...

Amigo Ludo.
Uns de férias outros a trabalhar,
todos nós andamos afastados destas lides da blogosfera.
Uma boa semana.
Um abraço

pin gente disse...

que pena esta fantástica poesia não versar o irreal!

um abraço
luísa

paginadora disse...

Querida MEG

Este poema de Joaquim Pessoa é duro, rude mas por isso mesmo muito belo.
Um bela chamada de atenção para o que vai acabar por nos destruir: a poluição. Toda ela. Contemos também com o lixo acumulado em muitas "cabeças pensantes" da nossa praça.Tomemos consciência da necessidade de pararmos um pouco, debaixo de uma árvore frondosa,olharmos para cima e à nossa volta. Celebremos a vida com alegria e bem acompanhados,com um livro. Que se lixem os pastéis de nata e os seus comedores: uns fazem engordar, outros engordam de nada fazer.
Um beijinho grande para ti amiga

Papoila disse...

Querida Meg:
Tenho andado numa roda viva neste período em que para alguns irem de férias os outros redobram o trabalho...
Um grande poema de Joaquim Pessoa! As cidades cada vez mais poluídas!
E tanta displicência face ao problema.
Beijos

Meg disse...

Pim Gente

É um dos dramas dos nossos dias, não tem nada de irreal...
Um abraço

Meg disse...

A Paginadora

Querida A.
Creio que já não há solução... são irreversíveis estes dois tipos de poluição. Esperança? Mioto pouca.

Um abraço

Meg disse...

Querida Papoila,

Não só as cidades...comecemos pelas mentes das gentes que nos governam.
E quanto a correria, ainda falta o Agosto...!!!!

Um abraço