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28 de setembro de 2008

Venenos de Deus, Remédios do Diabo

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Venenos de Deus, Remédios do Diabo
é o mais recente romance de
Mia Couto,
escritor moçambicano nascido em 1955
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[…]O médico estranha a sua própria ansiedade. Naquele lugar sem outra evasão, o relato dos sonhos de Bartolomeu era uma espécie de matinée de cinema. O doente desenrola a voz numa poalha luminosa e o português vai-se lembrando da sua cidade, dos rumores confusos provenientes das ruas atafulhadas de carros e gentes. E recorda Deolinda, o encontro fugaz e fabuloso, sob o fundo de luz branca de Lisboa. Quando Sidónio volta a dar conta do tempo, já Bartolomeu desnovela: «…chovia aquela noite…». - Chovia no sonho? - Oh, Doutor, o senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos? - Eu, poesias? - Não é de agora. O senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas… - Acha que isso é poesia? - Então não é? Corta-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá, Doutor, que faca corta um líquido? Só a faca da poesia. - Você é que anda muito inspirado nestes dias, meu caro Bartolomeu. - Ah, é verdade! Há ainda mais outra: o senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo, Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota… Que também ele, Bartolomeu Sozinho, fora dado a poesias. E pela centésima vez reabre a gaveta para reler num bloco de notas algo que escrevera sobre tempos e pensamentos. Avança para o centro do aposento e faz de conta que vai lendo um invisível manuscrito: «Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.» A mão tomba-lhe num inesperado abatimento e Bartolomeu sacode a cabeça como surpreso pela sua própria criação. - Munda diz que isto não é da minha autoria. Mas eu escrevi isto a bordo do Infante D. Henrique. Eu lá também sofri de poesia. O português contempla o velho com comiseração. A inexistente folha de papel que lhe pende do braço pesa mais do que ele pode suportar. E ele mesmo, Sidónio Rosa, se sente subitamente envelhecido. A idade é uma repentina doença: surge quando menos se espera, uma simples desilusão, um desacato com a esperança. Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós[…] in “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” – Mia Couto
««««««o»»»»»»
[...] Mia Couto sabe contar uma história, doseia a informação com mestria, revela os factos no momento certo, fá-lo quando já estamos desconfiados da sua existência e sem chamar a atenção para si. O leitor só sabe aquilo que a personagem principal sabe, embora haja algumas excepções, e toma conhecimento dos factos ao mesmo tempo que Sidónio. Isto permite que cada revelação seja, no contexto da narrativa, verosímil e permite também uma maior envolvência da parte do leitor[...] Em Venenos de Deus, Remédios do Diabo é fácil gostarmos das personagens pelo carisma e pela quase total ausência de maldade. Não são heróis, são pessoas que, como todos nós, cometem erros, mentem, falam verdade, têm medos, fantasmas e acreditam em algo que não se vê e que não é terreno. Nessa galeria de personagens destaca-se Bartolomeu Sozinho, um velho reformado que andou toda a vida, quando Moçambique era uma colónia portuguesa, embarcado no transatlântico Infante D. Henrique. Passa os dias fechado no seu quarto, apenas com a companhia da televisão que, como é dito, sonha por ele. Mal visto em Cacimba, por causa da sua ligação ao regime colonial que é empolada por uma daquelas lendas heróicas que alguns contam – neste caso o administrador Suacelência – para se vangloriar e conseguir um lugar de destaque junto da comunidade[...] . por Emanuel Amorim, in Orgia Literária . .
«««««o»»»»»
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37 comentários:

Anónimo disse...

meg:
o mia couto é sempre forte.
um beijo.
romério

Moacy Cirne disse...

Oi, Mia Couto - desde que o descobri, não faz muito tempo - é uma das minhas mais vivas admirações da nossa língua. Mas ainda não li "Venenos de Deus"; pretendo fazê-lo em breve.
Um cheiro.

Maria disse...

Gosto do Mia, incondicionalmente!
Este livro é muito bom.

Beijo, Meg

Meg disse...

Amigo Romério,
O Mia Couto é daqueles autores aos quais volto com mais assiduidade.
Gosto de "saborear" os seus textos, e penso que o mesmo se passa com os meus amigos.

Um beijo

Meg disse...

Caro Moacy,
A nossa língua, nos textos ou nos livros de Mia Couto, tem outro sabor e, além disso, tem vida própria.
Não deixe de ler este livro.

Um abraço e... um cheiro

Meg disse...

Querida Maria,

Então já somos as duas, pelo menos.
Mia Couto um autor sem reservas.
Um abraço

Peter disse...

Agora dei por já não ler Mia Couto há tempo, possivelmente irei comprar estes "venenos".

Votos de uma boa semana.

Amaral disse...

Meg
O mais recente romance e um belo romance. Lê-se num fôlego. Também já coloquei um post no meu cantinho sobre este romance.
Mia Couto sabe cativar pela forma como escreve.
Boa semana
Abraço

Meg disse...

Peter,

Pois se ainda não leste, não percas mais este livro do Mia Couto.
Sei que vais gostar.
Um abraço

Meg disse...

Caro Amaral,

Sim, agora me lembro, mas Mia Couto terá sempre aqui um lugar de destaque.
Ele, como ninguém, recria a nossa língua, fazendo-nos saboreá-la.

Um abraço

Filoxera disse...

Muito se tem escrito sobre este livro na blogosfera, ainda não o li, nem tenho, mas um dia lá o farei.
Beijos.

José Lopes disse...

Eu ainda ando atrasado nas leituras, nem sei bem quantos livros ainda esperam a minha visita arrumados na prateleira do corredor. Vou comprar certamente, mas não me comprometo com datas para a leitura.
Boa semana
Cumps

Bípede Implume disse...

Graças a estas viagens na blogos, vou tendo contacto com Mia Couto. E tens razão, a sua escrita é para saborear.
Boa semana e grande abraço.

São disse...

Gosto muito de Mia Couto e adorei a carta aberta a Bush.
Fica bem.

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Meg, minha amiga, mais um presente perfeito!!! Teu Recalcitrante está a cada dia mais apetecível!!!
Bjs

Meg disse...

Filoxera,
Não deixes de ler... vale mesmo a pena.
Um abraço

Meg disse...

Amigo Guardião,
Se eu sei o que é isso! Mas o dia chegará para pôr a leitura em dia.
Um abraço

Meg disse...

Isabel,
Essa é uma das características que mais aprecio em Mia Couto.
E se puderes, não deixes de ler.
Um abraço

Meg disse...

São,
Obrigada pela visita e por se juntar aos leitores de Mia Couto.
Um abraço

Meg disse...

Caro Namibiano,

Muito obrigada pelas palavras sempre estimulantes.
E fico feliz por ter gostado deste post.
Um abraço

Zé Povinho disse...

Espero que seja na linha de outros que já tive oportunidade de ler.
Abraço do Zé

Heduardo Kiesse disse...

um dos meus preferidos!!!!

:-)

ja chorei e gargalhei a ler Mia!!


senti de tudo - fabuloso mesmo!!!

Heduardo Kiesse disse...

um beijo fraterno estimada amiga!!

Meg disse...

Amigo Zé,

E não é com este que te vais desiludir, tenho a certeza.Não deixes de ler.
Um abraço

Meg disse...

Caro Valente,

Obrigada pela visita e um abraço para si também.

Meg disse...

Paradoxos,
Eduardo, fico feliz por te teres divertido. Mia Couto é para ler e reler.
Um abraço

Meg disse...

Eduardo,

Obrigada pelas palavras.
Um beijo também

meus instantes e momentos disse...

muito lindo teu blog, parabens , foi muito bom conhecer.
Maurizio

SILÊNCIO CULPADO disse...

MEG
Mia Couto sabe dizer com aquela força que nos enche a alma e nos entorpece os sentidos.
Ele próprio é um poeta nas suas descrições mas um poeta que não sobrevaloriza o eu mas as dores alheias. Dores de pessoas simples e, por isso, muito iguais a si próprias.
Para os que já perderam estas faculdades, por excesso de individualização nas sociedades da competitividade, talvez estas dores não façam já sentido.
Por isso é gratificante encontrar aqui quem as valorize. Sinal de que ainda somos gente.

Beijos

Papoila disse...

Querida Meg:
Está na minha lista. Hoje também falo de livros... e deixo-te lá no campo prémios para levantar se assim entenderes.
Beijos

Meg disse...

Instantes e Momentos,

Muito obrigada pela visita e pelas palavras.
Cumps

Meg disse...

Silêncio Culpado,
Lidia,
Como é bom ler Mia Couto e encontrar esse lado tremendamente humano e já algo raro nos dias de hoje em que tanta gente tem o nariz dentro do próprio umbigo!
Obrigada pelas tuas palavras.
Um abraço

Meg disse...

Papoila,

As listas vão aumentando enquanto o tempo escasseia. Mas há sempre um dia para o "tal" livro.
Obrigada pelos prémios que terão de ir para um espaço que estou a preparar - esta página já está tão pesada, que tenho de rever todo o conteúdo.
Um abraço

C Valente disse...

Bom fim de semana
saudações amigas

Agulheta disse...

Querida amiga.A minha visita é para deixar abraço e bom fim de semana. Beijinho

Meg disse...

Caro Valente,

Saudações para si também.
Agradeço a sua visita.
Um abraço

Meg disse...

Lisa,
Desejo-te também um óptimo fim de semana.
Um grande abraço amigo