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Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios, onde às escurass
e vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o cafés
em cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental. Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proibem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto, assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação «save»
e assim alcançarem a eternidade. (in Poesia Reunida, 1990-2000)
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Fernando Pinto do Amaral nasceu em Lisboa em 1960. Frequentou a Faculdade de Medicina, mas abandonou o curso, vindo a licenciar-se em Línguas e Literaturas Modernas, concluindo o Mestrado e o Doutoramento em Literatura Portuguesa.
É Professor do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa. Publicou, desde 1990, cinco livros de poesia, dois volumes de ensaio e traduziu poemas de Baudelaire, Verlaine, Jorge Luis Borges e Gabriela Mistral. Prefaciou edições de poesia de Camões, Bocage, Antero de Quental, Cesário Verde, Ruy Cinatti, Tomaz Kim e Luís Miguel Nava, entre outros.
Alguns dos seus poemas estão traduzidos e publicados em espanhol, francês, neerlandês, alemão, checo, inglês, búlgaro e turco.
Em 1990 publicou o seu primeiro livro de poesia, "Acédia", a que se seguiram "A Escada de Jacob" (1993), "Às Cegas" (1997) e "Poesia Reunida 1990-2000".
De entre os seus ensaios destaque-se "O Mosaico Fluido - Modernidade e Pós-modernidade na Poesia Portuguesa mais Recente" (1991).
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26 comentários:
Obrigado pela partilha.
Cumprimentos meus
Querida amiga. Já aqui vim da parte da tarde,como vou sair pela manhã. Venho deixar tudo de bom e gostei da partilha,fica bem.
Beijinho
"o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental"
Um autor que não conhecia e que nos retrata a vida que levamos.
É o interesse daquilo a que chamam "partilha". Sem querer atingir ninguém, considero-a uma designação infeliz e até com carácter depreciativo.
Oi, Meg,
o seu blogue continua tinindo.
E a história dp Padre - na verdade, já a conhecia - foi parar no Balaio de hoje. Os padrers seridoenses, no séc. XIX e primrira mdetade dos anos XX, também eram bastante mulherengos. Mas sem a fúria do tal prior de Trancoso.
Um cheiro.
Então é assim...
Deixo-te um beijo, Meg
É muito bem ridicularizado, esse tique contemporâneo da linguagem. Já tinha lido esse livrinho poesia & prosa do Fernando Pinto Amaral, comprado numa tabacaria por € 1.00 ou € 0.50, não lembro! Era uma distribuição anexa a uma revista qualquer, mas vendável em separado, também! :)
É sempre uma mais-valia passar por aqui - então é assim, sabes que desconhecia Fernando Pinto do Amaral? Gostei imenso deste texto e parece-me bem aprofundar o conhecimento da sua obra!
Obrigada, Meg!
Beijinho do sul profundo
Como agradecer-te?
Beijinhos.
Amigo Vieira Calado,
Obrigada pela visita.
Tem um bom fim de semana.
Um abraço
Lisa,
Obrigada também a ti pela visita e... boas férias.
Bom fim de semana.
Beijinho
Demorei tempo a "aderir" a este tipo de escrita...Fui-me "convertendo": agora gosto. Esta ironia sobre certos quotidianos construídos às custas de "química"...
Um abraço, Meg, dum preguiçoso...
Peter,
E neste viver nos revemos... não todos evidentemente. Felizmente também.
E o autor... bom, vale a pena conhecer a sua obra.
Um abraço
Moacy,
Meu amigo, meu blog até anda tinindo muito pouco, mas você sempre me acarinhando com seus mimos... e o Recalcitrante no Balaio foi uma honra, além de um mimo, uma grande honra.
Em breve o trabalho abranda e voltarei com mais tempo, Moacy!
Um cheiro p'rocê
Menina do Rio,
Obrigada, Verónica, "é mesmo assim"!
Bom fim de semana.
Um beijo
vbm
Querido Vasco,
É de tiques estamos bem fornecidos, meu caro.
Não foi a esses livrinhos que fui buscar este poema, mas tenho-os todos - os que a Visão nos "dá" de vez em quando.
Um abraço
Utopia das palabras
Obrigada pelas tuas palavras... e tens razão quanto ao autor, não deixes de o conhecer.
E do Algarve mais litoral te deixo
um beijo
São,
Não tens que agradecer-me nada, minha querida amiga... a tua presença aqui nesta altura de tanto trabalho é que é para mim um grande carinho.
Volto em breve, duas semanitas mais.
Beijo
Querido Zef,
Só tu sabes o quanto gosto de te ver nesta "minha casa"... e principalmente das tuas palavras.
E preguiçoso ou não a casa é tua sempre e quando te apetecer.
Um beijo
a tinta
na
ferida
[poesia
viva e
mordaz]
*abraço*
Querida Meg:
Voltei de férias e visito os amigos.
Formidável poema que aqui nos dás a ler... "Então é assim..." que vamos vivendo... "Parece que está morta a metafísica e que a verdade adormeceu, sonâmbula,nos corredores vazios,"
Beijos
A combinação, belíssima, do texto com a música, travou o meu sono e convidou-me a ficar.
Obrigada.
Uma visita para viajar com as palavras que são sempre bem escolhidas por aqui.
Cumps
Lupussignatus,
Sempre oportunas as palavras de um também poeta!
Um abraço
Querida Papoila,
Tu voltaste e eu ainda não vejo sinal delas, das férias. Está Agosto quase a acabar, mas são cada vez mais longos estes dias.
Saudades.
Um beijo
Filoxera,
Fica bem, então, minha amiga, vale-me a vossa companhia, mesmo quando estou tanto tempo ausente dos vossos blogues.
Um beijo
Guardião,
As palavras andam escassas por aqui, que o Verão não permite mais.
Mas quando os Poetas falam como este empresa torna-se mais fácil.
Um abraço amigo
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