. A Carta A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo? - Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, virgula a virgula. - Outra vez, mamã Cacilda? - Sim, maistravez. Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço. - Entenda, mamã Cacilda. Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava. - Continua. Por que paraste? Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim: «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas: mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se: na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei: desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei: adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho. - Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas. Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor: fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta. - E agora, diz: porque vieste nesta minha casa? Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio. - Me vens ler o meu filho? Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria: sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi: a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera. . Mia Couto . . .Sei que este texto é talvez um pouco extenso demais, mas confio na vossa capacidade de se emocionarem, para o lerem ...Desde já, o meu agradecimento antecipado para a vossa paciência e colaboração
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53 comentários:
O coração sente o que as palavras não transmitem, e a mentira apenas adoça a verdade que no íntimo já se desvendara.
Cumps
Meg
Confesso que não li o texto na totalidade, mas não preciso. Gosto muito da escrita de Mia Couto e já li inúmeras obras dele. Foi um dos autores que estudei na faculdade.
Abraço
Por muito extenso que seja o texto, Mia Couto lê-se sempre com prazer (quem gosta, é claro, que é o meu caso).
Li,dele, recentemente, dois livros de contos: "Cada homem é uma raça" e "O fio das missangas".
Gostei bastante, principalmente do primeiro. E também gosto muito da poesia dele.
Parabéns pela publicação.
Beijinhos
Mariazita
Querida Meg:
Nunca é demais ler o Mia!
" Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas: mesmo poucas são infinitas."
Beijos
Bem pode o Mia inventar palavras e linguagens, o destino de todas as escritas é o fogo, o fogo da lareira, das icineradoras, do pinhal da Sertã e da Lousã, das torres gémeas da Roma de César, do tempo da história e da meteorologia!
Que ardam todas as palavras e linguagens! Que ardam os servidores do Google! Os tempos são de silêncio!
Um abraço e deixa arder
Belo texto, quando o longo se torna curto
Saudações amigas
Mia Couto: sensibilidade à flor da pele.E a música linda.
Já li estas linhas do Mia Couto, não me recordo onde. Soberbo!
Em relação ao comentário que deixaste no meu post referente ao Euilíbrio Interior, não só é muito acertado, como é o mais original e engraçado. Obrigada
Beijinhos.
Acredita que quando li as palavras "extenso" pensei em mudar de página e voltar noutra altura.
Depois, começei a ler, e de extenso o texto não tem nada. É lindo.
Abraço.
marinheiroaguadoce a navegar
letras
de
fogo
(a ternura
arde)
Amigo Guardião
Coração de mãe não se engana.
Um abraço
Amigo Amaral,
Peguei neste texto pelo tema que achei comovente. Claro que é a escrita de Mia.
Um abraço
Mariazita
De Mia Couto vale a pena ler tudo. Mas este excerto tocou-me pela sensibilidade do tema.
Um abraço
Papoila
O que há de sabedoria e sensibilidade neste texto de Mia, foi o que mais me comoveu.
Um abraço
Amigo Pata Negra,
Quanta recalcitrância!
Eu sei que é um desabafo, o que até faz bem, mas deixar arder, isso nunca!
Um abraço amigo
Amigo Valente,
Obrigada pela paciência, mas julgo pelo que diz, que valeu a pena.
Um abraço
Padeirinha,
Foi essa sensibilidade que me fez trazer este texto aparentemente tão longo.
Gostei da referência à música. Obrigada e um abraço
Filoxera,
Mia anda muito por aí, por isso não será de estranhar já conheceres este excerto. Mas nunca á demais lê-lo.
Conseguiste neutralizar a formiga?
Um abraço
Amigo Marco,
Obrigada pelas tuas palavras.
É isso mesmo, começa-se a ler e a emoção leva-nos até ao fim.
Um abraço amigo
Lupussignatus,
Não só as letras ardem, como a emoção se instala em nós.
Um abraço
Meg. Ao ler Mia Couto,ele tem um certo dom de sensibilidade escrita,pois conheço alguma poesia do mesmo,este texto não! Gostei.
Beijinho Lisa
MEG
LINDO. ADOREI.
MIA COUTO sempre!!!
Que bela surpresa aqui encontrei. E fiquei sabendo que Mia Couto era um dos autores que se estuda na faculdade...
Sabias que «tenho a cara lavada...»
queres ver o meu novo visual?
Estás convidada.
Aproveitas e vês que sempre fui ao Festival dos Oceanos, com a minha netinha.
Beijinhos.
Para mim, Mia Couto é um ser de Luz e harmonia, sabes?
Um abraço.
Lisa,
Mia Couto tem também o poder de recriar a nossa língua, o que perpassa nos seus textos.
Um abraço
Tulipa,
Obrigada pelas tuas palavras e lá vou eu fazer-te uma visita agora mesmo.
Um abraço
São,
É, Mia Couta passa-nos esse sentimento de luz e harmonia.
Um abraço
Eu sou muitíssimo suspeita, já que sempre me encanto com o que Mia Couto escreve.Emudeceu em mim a lágrima de mãe Cacilda!
Obrigada Meg querida por esta partilha.
Obrigada também pelos votos; sei bem que é demasiado longe, mas quem sabe, um dia nos veremos...sei ainda que há-de estar em livrarias do Algarve, depois falaremos.
Beijos
Maria Mamede
Mia Couto pois claro
Gosto imenso de Mia Couto e tenho o prazer de ter um livro autografado por ele.
“Para si, meu filho, para si que estudou em escola, o chão é um papel, tudo se escreve nele. Para nós a terra é uma boca, a alma de um búzio. O tempo é o caracol que enrola essa concha. Encostamos o ouvido nesse búzio e ouvimos o princípio, quando tudo era antigamente.” (O último voo da flamingo)
Querida Maria Mamede
Esta mãe Cacilda muito comovente.
E só Mia para nos contar esta história.
Mais uma vez, o maior sucesso para o lançamento do livro... e cá o espero no ALgarve, ou quem sabe em Lisboa.
Um grande abraço
Mar Arável,
Mia Couto um dos meus autores preferidos, sim.
Um abraço
Peter,
É uma relíquia esse autógrafo.
Do Mia Couto me vêm os sons, alguns já meio esquecidos, mas logo relembrados em cada linha de texto.
Um abraço
Uma história comovente e que a escrita do Mia Couto torna ainda mais terna e pungente.
Gostei muito.
Depois de umas longas férias venho encontrar aqui a beleza em estado puro.
Grande abraço.
Maravilhoso o texto!
É...Penso que mãe, sabe mesmo o que acontece com os filhos...
Obrigada por oferecer tão boa leitura!
Beijos de luz...
Sempre um grande prazer visitar este blog por todos os motivos óbvios e nele expressos. Este texto é de uma BELEZA estética, emocional e humana que nos poe os sentimentos a flor da Alma!!!
Obrigado Meg!
Abracos!!!!
Bípede Implume
É bom saber que gostaste.Obrigada pelas tuas palavras bonitas.
Um abraço
Mundo Azul,
Seja muito bem vinda a este espaço.
Muito obrigada por esta primeira visita e pelas palavras deixadas
com tanto carinho.
Um abraço
Romério,
É sempre com o maior prazer que te vejo por este -também teu- espaço.
Vou tentar destacar a tua mensagem aos amigos deste blog, aos teus amigos.
E um até breve, aqui.
Um abraço
Romério Rômulo disse...
meg:
estive aqui e deixo meu abraço a todos os amigos do "recalcitrante".
um beijo.
romério
12 de Setembro de 2008 3:54
Amigo Namibiano,
Bem haja pela visita e pelas palavras que sinto cúmplices na sensibilidade.
Um grande abraço
Cara Meg
Quem, como eu, ama os livros e a leitura, nenhum texto bom lhe parece longo. Em casos como os de Mia Couto sou eu que acrescento tempo àquele que é necessário para ler as palavras, porque me detenho em cada uma delas para as saborear melhor. Mia Couto é um banquete!
Este conto é tão verdadeiro que nem me atrevo a dizer do que vivi ao lê-lo.
Um abraço
Recriar a língua, é bem verdade. Li alguns contos do Mia, ainda não todos os que comprei, e tenho gostado da sua escrita, o que é natural.
Bom fim de semana
Abraço do Zé
MEG
Nenhum texto de Mia Couto é muito extenso.A beleza das palavras que se entrelaçam nas nossas emoções fazem dele aquilo que é: um escritor único que conhece a dor e a poesia dos humildes.
Há uma linguagem do faz-de-conta que dói pela profundeza com que nos atinge.
Esta passagem é excelente. Obrigada por no-la proporcionares.
Deixo-te uma passagem duma poesia do falecido maestro Belo Marques que me veio à memória quando li o texto. É duma mãe para um filho que vai para a guerra:
"Enganaram-te, meu filho
tu não queiras
levar a dor ao peito doutras mães
em nome de rídiculas bandeiras
de inglórias fortunas que não tens."
Abraço
Cá estamos, de novo.
Beijinhos.
Cara MPS,
Sei que por vezes os textos longos assustam à partida, mas depois de se começarem a ler eles são não só lidos como saboreados em cada linha.É um excerto particularmente comovente, eu sei que sou suspeita mas até acho que é de ler e reler.
A mãe Cacilda assim o merece, e o Mia também.
Um abraço
Um
Amigo Zé,
Vejo que és dos meus. Compras para "ter para ler quando der"
O vício do papel que nos está nos genes.
Um grande abraço e BOM REGRESSO
Lídia,
Comovente, simplesmente comovente esta mãe Cacilda nas palavras escritas de Mia. Texto para saborear, para ler e reler cada palavra.
Lindo o poema de Belo Marques. Sabes que privei com a sua família em Luanda? Gente boa, minha amiga.
Um abraço
Amigo Vieira Calado,
É tempo de ter algum tempo.
Recomecemos.
Um abraço
Passei para deixar um beijo e desejar um domingo feliz!!!
Mundo Azul
Zélia, um bom fim de semana para você também.
Um abraço
Meg,
Aqui no Brasil são quase meia noite. peço desculpas por não conseguir ler teu texto agora, mas voltarei depois para fazê-lo com calma.
Neste momento, estou aqui para convidá-la a participar da Bloaggem Coletiva JUSTIÇA PARA FLAVIA, que vai acontecer na próxima segunda-feira, dia 15.
As instruções estão no blog de Flavia.
Muito obrigada.
Um abraço.
quando se trata de Mia Couto, as palavras têm uma magia especial, pelo menos para mim
beijos
Lê-se com a alma já a chorar, pelo que se adivinha.
E como sementes de palavras ao vento, Mia Couto é um amor de escritor, uma sensibilidade de ...África mesmo!!!
Bjinho
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