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“Um nome: Al Berto."
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"A poesia como ataque por todas as vias - droga, sexo, loucura, jogo, magia. Um fluxo de revelação… que desencadeia o modo diverso de enfrentamento da ocupação majoritária dos impulsos das práticas da vida”.
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“Todos os meus livros tiveram um caráter de urgência”
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Espelhando vivências de uma juventude errante, em deambulações por uma certa Europa marginal e underground – que o poeta cumpriu vivendo, entre o final da década de sessenta e a década de 70, numa comunidade urbana de Bruxelas e nos bas-fonds de Paris e Barcelona –, oscilando entre o excesso da experiência emocional e uma melancolia desolada e solitária, a obra de Al Berto reflecte a presença imaginária de Genet e Rimbaud na paixão urgente, na transgressão sexual, na vertigem autodestrutiva, na solidão, na experiência do deserto e da morte. [cais de poemas]
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aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz
arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas
acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração
e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta
nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa
assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar
"in Horto de Incêndio
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Esta poesia tão viva foi escrita por um poeta que já se encontra morto, vítima ele mesmo da Sida, como aqueles companheiros que precisamente em seu poema Sida, já não mais lhe telefonam.
Não pôde Al Berto, assim, usufruir dos tratamentos mais avançados que surgiram logo a seguir, dando chance de continuarem activos grandes escritores seropositivos da contemporaneidade.
[Lucília Nogueira]
Al Berto, in O Medo
.em tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler. o vento da noite traz imagens: um rapaz em calcário deitado no dorso dum cavalo azul perfura a claridade do mar. abro a janela do sonho, aceno-lhe, mas ele não me pode ver. uma ave de palavras escreve no espaço a remota sabedoria do voo, depois desce e vem pousar suavemente na palma da mão. olho-a mas não ouso tocar-lhe. acordo quando a ave e o rapaz se deitaram sobre a pele. abro os olhos e estendo a mão e o corpo para fora do sono, ergo-me por dentro do imenso vazio. tudo se despedaçou. o sonho , e o amor que é sempre tão breve.
o mundo dorme sob o vento. só eu continuo acordado, em vigília. se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela. levantar-me-ia daqui para encarar a morte, dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo. estou gasto. dei-me sempre mais do que podia.
não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as
doenças, de todas as emoções. sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem cujo nome se perdeu e cuja biografia possível está no pouco que escreveu. sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um alfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar. lá fora anoiteceu. (...)
são raras as claridades que do meu sangue sobem ao rosto. há um lume invisível no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvore cresce nos pulmões. assim construo as paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer.
mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar o universo inteiro a partir das minhascélulas, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos…
… a paixão revelou-se-me no instante em que percebi que sabia quase tudo da vida, mas já não foi possível perder-me na tentação do suicídio nunca amei e nunca fui amado: ignoro se isto é verdade, o mais provável é ter inventado, um dia, esta mentira, unicamente para me salvar. que horas serão para lá deste século? onde estaremos neste momento? estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e me comoves? … teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossivel esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos.
Al Berto, in O Medo
“Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório. A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque. A eternidade é uma permanência da força que está dentro de nós”.
o rumor do corpo a encher-se de mágoa
Al Berto -(1948 - 1997)Alberto Raposo Pidwell Tavares nasce em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948. No ano seguinte já está em Sines, onde passa parte da infância e adolescência.
Poucos conhecem o seu lado escultórico, mas os amigos de infância ainda recordam os "bonecos" em argila que esculpia em casa, muito antes da António Arroio.
Teve sempre um ar extremamente irreverente para o seu tempo.
Filho de família da alta burguesia de origem britânica extraordinariamente conservadora, na sua adolescência, traja de modo displicente de calças de ganga e ténis rotos, para escândalo geral.
Terá sido a primeira afirmação da sua diferença intelectual.
Al Berto frequentou diversos cursos de artes plásticas, em Portugal e em Bruxelas, onde s
exilou em 1967.
A partir de 1971 dedicou-se exclusivamente à literatura.
Estreou-se com o título «À Procura do Vento num Jardim d'Agosto», 1977.
A sua poesia retomou, de algum modo, a herança surrealista, fundindo o real e o imaginário.
Está presente, frequentemente, uma particular atenção ao quotidiano como lugar de objectos e de pessoas, de passagem e de permanência, de ligação entre um tempo histórico e um tempo individual.
Posteriormente, os seus textos passam a apresentar um carácter fragmentário, numa ambiguidade entre a poesia e a prosa («Lunário», 1988; e «O Anjo Mudo», 1993).. Foi distinguido em 1988 com Prémio Pen Club de Poesia pela obra «O Medo».
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"A eternidade é uma permanência da força que está dentro de nós"
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.Al Berto morre de linfoma em Lisboa a 13 de Junho de 1997
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