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28 de junho de 2008

Delírio

Wanda Ramos nasceu em Angola em 1948.
Filha de pais portugueses, veio viver para Portugal com apenas dez anos.
Colaborou com diversas publicações.
Publicou o seu primeiro livro de poemas, Nas coxas do tempo, em 1970.
Autora de algumas obras de ficção, desenvolveu intenso trabalho enquanto
tradutora de escritores tais como Borges, Octavio Paz, Tagore, John le Carré,
entre outros.

Em 1986 publicou Poe-Mas-Com-Sentidos, livro no qual colhemos o poema acima transcrito.
Faleceu em 1998.
[in Insónia ]
.
Meditation, Gerhard Richter, 1986

delírio dor febre rio onde tinha as raízes

deste desencanto das coisas diariamente traindo-se
.
quando nem mesmo na água me distendia

(nem seria provavelmente pela ausência de janela

donde dependurar as mãos-apaziguamento)

ou seja quando nem mesmo o púbis à tona do banho

escavava na inércia uma presença de espuma.

e por que havia de? às vezes era o enfado

tão bastas vezes em dados tempos que:

os olhos longe a boca uma linha por cortar

os seios imóveis na concha do soutien o ventre

de duna achatando-se paulatinamente o umbigo

sentinela na guarida o sexo retomando por desfastio

memórias idas as coxas diapasão inútil entre lençóis

os tornozelos cianosados os miolos enfim no topo

da pirâmide como entulho. que paisagem esta assim?

delírio febre contusão e o sono abrindo-se tão alto

como a lua nesse crescendo dela consumindo-se

até que tudo não fosse mais que rasgão.

Wanda Ramos
[Poe-Mas Com-Sentidos]

««««««««»»»»»»»»

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Poeta, ficcionista e tradutora portuguesa, natural de Angola.
Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa e fez uma pós-graduação em Ciências Documentais. Colaboradora de diversas publicações, entre as quais A Capital, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Diário Popular,
Fenda, Loreto 13 e África. A sua estreia literária deu-se com o livro de poemas Nas Coxas do Tempo (1970), seguido por E Contudo Cantar Sempre (1979) e Poemas-com-Sentidos (1986), obras em que o tema central é o tempo. Este tema tem
prevalecido, também, ao longo da sua caminhada ficcional. O seu primeiro romance, Percursos (Do Luachimo ao Luena) (1981), galardoado com o prémio da Associação Portuguesa de Escritores, consagrou a autora como um dos nomes mais importantes da ficção portuguesa dos últimos anos. Construído a partir das suas memórias pessoais, recorda a sociedade colonial e dá a conhecer a sua visão da guerra colonial, sob um ponto de vista feminino. Publicou de seguida o romance As Incontáveis Vésperas (1983). Fez uma incursão pelo território do fantástico no livro de contos Os Dias Depois (1990) e regressou ao romance com Litoral (Ara Solis) (1991), obra com referências autobiográficas.
As Tormentas

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AOS AMIGOS E A TODOS OS QUE VISITAM ESTE BLOGUE...
.ESTA SEMANA IREI VISITÁ-LOS E LÊ-LOS
A TODOS

22 de junho de 2008

Primeiro Amor. Vivi aí

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MENSAGEM AOS AMIGOS.POR MOTIVOS PROFISSIONAIS ALIADOS À ÉPOCA ALTA DE TURISMO,
O MEU TEMPO DISPONÍVEL DIMINUIU SIGNIFICATIVAMENTE
ATÉ SETEMBRO
.Por esse motivo as minhas visitas serão mais espaçadas, tentarei pelo menos uma vez por semana, para ler e comentar o que os meus amigos publicam.
.

Prometo responder a todos os comentários que tiverem o carinho de deixar
.
AQUI, EM CADA POST.um abraço da meg
.
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Imbondeiro, de Eleutério Sanches




PRIMEIRO AMOR. VIVI AÍ


Primeiro amor. Vivi aí.

Casa grande de janelas abertas

para o verde, chave do nosso coração.

Meninos do bom Deus com histórias diferentes

e o mesmo temor e segurança.

Tudo tinha muita cor

como as casas pintadas de fresco

e as ruas debaixo da sombra das árvores.

Dos jardins víamos os novos modelos dos carros

dos anos setenta.

Havia concertos para piano sem orquestra.

E, às vezes, mulheres, loiras muito loiras

cantavam músicas de nós desconhecidas.


Posávamos para os fotógrafos

moças virgens esperadas à saída das aulas

e ouvíamos "if you are going to San Francisco".

As fotografias dessa época estão em casa das tias

e os nossos olhos de terra ou de água ou de noite

não são o que eram: por isso, continuam os mesmos.


Ondulam as cortinas levemente

como a última brisa

para lá da sebe junto aos muros baixos

oiço o barulho das árvores

imensas e antigas

e lembra-me um andamento

das Fantasias de Schumann.

Primeiro amor.

Vivi aí.


(Do tempo suspenso)

Maria Alexandre Dáskalos







Maria Alexandre Dáskalos nasceu no Huambo em 1957.
Integrou a Comissão Nacional de Dinamização de Cooperativas, em Angola, em 1975-1976.
Fez parte da Direcção Nacional de Formação de Quadros no Ministério da Agricultura e foi funcionária do Departamento para o Desenvolvimento Industrial das Nações Unidas em Luanda (1982-1985). Foi directora da empresa de formação informática Datangol (1988-1991). De 1979 a 1981 frequentou o curso de História na Universidade Agostinho Neto, tendo-se aí iniciado nos estudos africanos, particularmente na história de Angola. Ainda em 1911 saiu a sua primeira obra como poetisa.
Em 2000 licenciou-se em História e em 2005 obteve o grau de mestre em História dos séculos XIX e XX, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente é doutoranda naquela instituição, onde também é investigadora, no Instituto de História Contemporânea.
Dedicando-se à História angolana colonial, colaborou em vários periódicos, nomeadamente nas revistas Angolê e Ler História.«««««««<>»»»»»»»

18 de junho de 2008

Dr...Dói-me o peito

Ansiedade, de Edward Munch




Dr.

dói-me o peito

do cigarro

do bagaço

do catarro

do cansaço

dói-me o peito

do caminho

de ida e volta

do meu quarto

à oficina

sem parar

sempre a andar

sempre a dar

dói-me o peito

destes anos

tantos anos

de trabalho

e combustão

dói-me o luxo

dói-me os fatos

dói-me os filhos

dói-me o carro

de quem pode

e eu a pé

sempre a pé

dói-me a esperança

dói-me a espera

pelo aumento

pela reforma

pelo transporte

pela vida e pela morte.


Dr.

já estou farto

de não ser

mais que um braço

para alugar

foi-se a força

e o meu corpo

é como o mosto pisado

como um pássaro insultado

por não poder mais voar.


Dr.

eu não sei ler

os caminhos

por dentro

dos hospitais

mas alguém há-de aprender

entre as rugas do meu rosto

o que não vem nos jornais

e não há nada no mundo

nem discurso

nem cartaz

capaz de gritar mais alto

que as palmas das minhas mãos

que o meu sorriso sem jeito,


Dr.

Dói-me o peito…


José Fanha,

Eu sou Português aqui, ed. Ulmeiro

«««««<>»»»»»


José Fanha (1951)Nasceu em Lisboa em 19/02/51.
Arquitecto não praticante. Professor do Ensino Secundário.Poeta, declamador, autor de letras para canções e de histórias para crianças, autor de textos para televisão, para rádio e para teatro. Pintor nas horas vagas.Entre muitas outras aventuras, integrou em 69/70 o grupo de teatro da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, foi fundador em 73 e animador do grupo de teatro “Lídia a mulher tatuada e os seus actores amestrados”, participou em 77 no concurso de televisão “ A visita da Cornélia”, colaborou nos programas de rádio “Pão com manteiga” e “Uma vez por semana”, tem colaborado periódicamente desde 79 com João Lourenço e Vera SanPayo Lemos na adaptação de inúmeros textos teatrais desde “Baal” até à “Ópera dos três vinténs”, ambos de Bertolt Brecht.

In: Eu sou português aqui - Obras de José FanhaUlmeiro - 1995

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15 de junho de 2008

Apossado

Romério Rômulo
Casa Carlos Scliar - Ouro Preto
Foto por Julia Lego



apossado


o amor chega
te aplica uma gravata destravada,
te morde até o tudo ser um nada,
te arrebenta a veia chamuscada.

o amor chega
te diz uma razão sobressalente,
te esmurra o queixo até quebrar um dente,te faz se ver um verme de repente.

o amor chega
no salto estapafúrdio de um cavalo,
no canto estarrecido de um galo,
no estertor de um sino só badalo.

o amor chega
sem avisar de nada e chuta a porta,
sem perguntar se alguma coisa importa,sem se inteirar se é viva ou se é morta.

o amor chega
da garganta traduz um brusco vento,
do estômago teu faz um tormento,
do intestino realiza o excremento.

daí, então
banguela, idiota a entender de nada,
chegado o amor, esqueces, e demente
num esforço frouxo que te sai dormenteainda tens força pra gritar: amada!


Romério Rômulo


NOTA

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PARA AQUELES NOSSOS AMIGOS QUE AINDA NÃO SABEM,
TENHO UMA BOA NOTÍCIA...
ATENDENDO AOS INÚMEROS PEDIDOS, ROMÉRIO RÔMULO ACABA DE LANÇAR O SEU PRÓPRIO BLOG...

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CONVIDO-VOS PARA UMA VISITA E CONHECER SUA OBRA

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11 de junho de 2008

Lugares Comuns

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MENSAGEM AOS AMIGOS
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POR MOTIVOS PROFISSIONAIS ALIADOS À ÉPOCA ALTA DE TURISMO,
O MEU TEMPO DISPONÍVEL DIMINUIU SIGNIFICATIVAMENTE
A PARTIR DO DIA 10 DE JUNHO ATÉ 15 DE SETEMBRO

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William Turner
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Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

Ana Luísa Amaral, «Lugares Comuns»,
in Coisas de partir,Gótica
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Ana Luísa Amaral venceu em 1 de Junho de 2008
O Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE)
que foi atribuído ao livro "Entre dois rios e outras noites"
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Nasceu em 1956, em Lisboa.
Aos nove anos, mudou-se, por vontade alheia, de Sintra para terras do Norte (Leça da Palmeira) (…)
Frequentou a Faculdade de Letras do Porto, tendo-se licenciado em Germânicas.
Deve ter gostado tanto da Faculdade que por lá se deixou ficar, como professora, até ao presente momento.
Por necessidade de carreira, tinha que fazer doutoramento.
E fez; sobre Emily Dickinson, cujos poemas a fascinam tanto como a fascinara o Zorro. Pelo caminho, foi publicando livros de poemas(…)
Ana Luísa Amaral, Autobiografia (1998)






Ana Luísa Amaral é professora de Literatura Inglesa no Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto.
Tem publicações académicas (em Portugal e no estrangeiro) nas áreas de Literatura Inglesa, Literatura Norte-Americana, Literatura Portuguesa e Literatura Comparada.
É Investigadora Associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
A sua poesia consta em várias antologias.
Publicou algumas obras para crianças e seis livros de poesia :

(Minha Senhora de Quê, 1990;
Coisas de artir, 1993;
Epopéias, 1994;
E Muitos os Caminhos, 1995;
Às vezes o Paraíso, Lisboa, 1998;
Imagens, 2000;
A Arte de Ser Tigre, 2003;
A Génese do Amor, 2005).
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AQUI, EM CADA POST
Por esse motivo as minhas visitas serão mais espaçadas, sempre que me seja possível, pelo menos uma vez por semana, para ler e comentar o que os meus amigos publicam.

Prometo responder a todos os comentários que tiverem o carinho de deixar
.
um abraço da meg
.
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8 de junho de 2008

Jovens, Férias e Álcool

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PORQUE ME ESPANTO E ME REVOLTO QUANDO VEJO UM GRUPO DE RAPAZES E RAPARIGAS PORTUGUESES, EMBRIAGADOS ÁS 3 HORAS DA TARDE, DE UM SÁBADO, PRIMEIRO DIA DE UM FIM DE SEMANA PROLONGADO...
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DEIXO AQUI ESTE TEXTO...
EMBORA DUVIDE QUE SURTA QUALQUER EFEITO
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Woman Absinthe Drinker, de Picasso

"Olhando para trás, vi como a acessibilidade do álcool me fez gostar dele.
Numa geração nascem comparativamente pouco alcoólicos.
E por alcoólico quero dizer um homem cuja química anseia pelo álcool e que o arrasta irresistivelmente para ele.
A grande maioria dos bebedores habituais não só nasceu sem o desejo do álcool, como tem verdadeira repugnância por ele.
Nem a primeira, nem a vigésima, nem a centésima bebida conseguem fazê-los gostar.
Mas aprendem, da mesma maneira que os homens aprendem a fumar; embora seja muito mais fácil aprender a fumar do que aprender a beber.
Aprendem porque o álcool é muito acessível.
A vantagem é que a geração vindoura não terá que carregar esse fardo.
Não tendo acesso ao álcool, não estando predisposta para o álcool, nunca lhe sentirá a falta.
Significará isso que a vida será mais abundante para os rapazes entretanto nascidos e prestes a tornarem-se homens - e para as raparigas nascidas entretanto e prestes a partilhar a vida deles."



Jack London, 1876-1916
in Memórias de um Alcoólico
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JACK LONDON - breve nota sobre este tema

Memórias de um Alcoólico - John Barleycorn, foi a última obra escrita por Jack London, 3 anos antes da sua morte, e conheceu um sucesso estrondoso.
Sendo autobiográfico, o livro provocou as
mais diversas reacções no público, que tinha de Jack London a imagem de um escritor de sucesso, do herói americano, que agora se revelava escravizado pelo alcoolismo, tendo sido assumido como propaganda antialcoólica por aqueles que na época procuravam proibir o seu consumo nos Estados Unidos.
John Barleycorn é, no entanto, e sobretudo, um dos livros mais surpreendentes acerca da vida e do pensamento do autor.
Escritor de viagens, cada livro de Jack London é o relato de uma luta com a natureza, qualquer que ela seja, interna ou exterior à condição humana.
Nesta sua espantosa autobiografia lacunar – apenas aborda a sua vida quando relacionada com o álcool – o autor reflecte sobre a fraternidade que existe entre os homens.
E o cimento que os une é a bebida, personificada em “John Barleycorn”.
Rui Catalão in «Mil Folhas»
(Público) em 15/12/2001
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4 de junho de 2008

Tchalé Figueira - Cabo Verde

Natural de são Vicente, onde nasceu em 1953, Carlos Alberto Silva Figueira, em 1973 emigra para os Países Baixos e quatro anos depois fixa-se na Suíça, onde frequenta a Escola de Belas Artes.
Desde 1985 reside no Mindelo. A obra de Tchalê Figueira, uma das incontornáveis referências culturais de Cabo Verde, assume claros contornos de intervenção social, com ocasionais incursões à fantasia, ao mundo da infância.
A mensagem reivindicativa do artista assume dimensões universais na medida em que esta realidade humana particular, espelha a que se pode encontrar nos quatro cantos do mundo.
A pintura de Tchalê assume influências dos expressionistas germânicos, Oskar Kokoschka e Kirschener, mas também do pintor espanhol Pablo Picasso, do francês Jules Fernand Léger e do britânico Bacon.Na sua pintura a figura humana é bem característica, normalmente aparece disforme e por vezes a lembrar uma armadura de lata, com pés que são blocos. É o homem condicionado, pelas leis, pela política, pela religião, pela moral. Um homem "quase máquina",robotizado, que pouco pensa mas obedece.            http://www.instituto-c
"É sempre com uma certa perplexidade e afrontamento que o olhar percorre um desenho ou uma pintura de Tchalê Figueira. O traço firme, em formas e volumes distorcidos, e o cromatismo berrante, questionam e ferem.
Não é preciso conhecer o universo do artista para concluir que estamos perante uma arte comprometida, de certo cariz político e ideológico, cuja intenção é deixar em ebulição as zonas limbosas; afrontar os quotidianos obscuros em que cada um de nós se move.
Qualquer tema lhe serve para transpor para a tela ; seja o hediondo trajecto dos ditadores do universo, o obscurantismo das religiões, os tabus sexuais, a hipocrisia dos políticos, o devir dos desfavorecidos, as guerras, as crianças sem infância. Todos os desvarios da condição humana.

Aos 17 anos evade-se da sua pátria, em fuga à incorporação para a guerra colonial que Portugal alimentava nas denominadas províncias ultramarinas.
Após ocupações episódicas como embarcado, fixa-se na Holanda, depois na Suiça, onde frequenta uma escola de Belas Artes.
Regressa a Cabo Verde, e à sua cidade, Mindelo, na ilha de S. Vicente, em meados dos anos 80, uma década depois da independência do seu país.

Uma das coisas que mais fascinam na sua obra é a faculdade de nos inquietar, porque
provoca, e nos força a tomar partido.

Fascínio que nos incita a tentar entender
o diálogo que as personagens da tela procuram estabelecer connosco.
Tchalê diz ter despertado para a pintura contagiado pelo seu irmão mais velho, Manuel Figueira, hoje também ele uma referência incontornável da criação artística caboverdiana.
É no rés-do-chão de um edifício comercial da família, na Rua da Praia, no Mindelo, por baixo dos ateliers do seu irmão Manuel e da sua cunhada portuguesa Luisa Queirós, que o vamos encontrar, a redesenhar o quotidiano da sua terra. Nessa rua buliçosa, paredes-meias com um dos marcantes símbolos do colonialismo – a réplica da Torre de Belém – e espraiado para a deslumbrante imensidão da Baía do Porto Grande, capta os ecos de um mundo que transcende aquele pedaço de horizonte .
A Rua da Praia é para si uma inesgotável fonte
de inspiração.
Uma espécie de centro social do mundo. Por aí gravitam os deserdados da sorte, as personagens que diz encontrar em qualquer rincão do planeta – o agiota, a prostituta, o vendedor, o traficante, o louco, o ladrão, o marinheiro, e as próprias figuras que pululam nos cortejos carnavalescos .

Já com uma assinalável produção poética (três obras publicadas), num país de reduzidas oportunidades editoriais, e duas novelas no prelo, começa também a marcar o seu percurso como um dos mais promissores escritores nacionais do início do século XXI.
As suas novelas recriam com mestria o percurso épico que o caboverdiano não pôde enjeitar ao longo dos séculos na luta diária pela sobrevivência.


Muitas das personagens leva-as da tela para protagonizarem as peripécias das narrativas.
E com rigor quase cirúrgico desnuda-as nas suas leviandades e perversidades.

O belo na sua obra, pictórica ou literária, é quase somente a espelhagem remirada da infância, do amor fraternal ou do percorrido pelos labirintos da paixão.
Avesso ao folclorismo que muitos artistas buscam na criação
artística das margens do “primeiro mundo”,
faz da pintura – o seu meio de subsistência – um acto quase sagrado, de absoluta liberdade, e de libertação plena. Exercita-a em momentos de exaltação, e não como rotineiro ofício quotidiano, ou ditado pela razão.
Nos seus dias cultiva também uma certa boémia, o convívio com os amigos, os deleites do ócio, as tertúlias do final de tarde no Centro Cultural do Mindelo, as conversas do acaso ao pôr-do-sol numa cratera esculpida pelas enxurradas nas dunas da Praia do Norte com o Vasco, o Germano, o Varela e mais um, ou outro, visitante ocasional, a saborear um trago de bom vinho tinto com um naco de presunto ou chouriço.E não raro é vê-lo como percussionista, a dar asas a outros talentos, em concertos jazz, de música tradicional, a emprestar a voz às doridas melodias da morna. Ou a surpreender-nos como intérprete de cinema, ou nos palcos do Mindelact – o renomado festival internacional do Mindelo. Nestas idiossincrasias se tece a vida e a arte de Tchalê Figueira. Uma arte de profundo humanismo, que nos espanta, nos interpela com a sua aragem fosforescente, visceral, e nos ruboriza a face."
[Francisco Fontes]
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